Acredito que não haja déficit na Previdência Social. Além
da reveladora entrevista da Professora Denise, abaixo reproduzida, a Associação
Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (ANFIP) divulgou, recentemente,
estudo que também questiona a informação governamental de rombos na Previdência
Social.
Ademais, parece-me, também, que estão nos empurrando,
cada vez mais e em alta velocidade, Planos Privados de Previdência para
complementação de aposentadoria.
A respeito, relato minha malfadada experiência. Ao
leitor, cabe o julgamento.
Por volta de 1972, associei-me ao plano de previdência
privada da CAPEMI (sistema de contribuição e aposentadoria definidas – sistema
de capitalização: contribuição durante 25 anos e recebimento de pensão por 20
anos consecutivos, para uma renda mensal esperada de aposentadoria, ao cabo desse período, equivalente ao salário, à época, de um gerente de agência do Banco do Brasil). Periodicamente (anualmente, semestralmente ou
mesmo mensalmente, de acordo com a velocidade do processo inflacionário), a contribuição era
reajustada. Após 25 anos de contribuição, aposentei-me pela CAPEMI.
Em março do corrente ano de 2017, concluído o prazo de
20 anos de recebimento da “pensão” (aposentadoria), encontrava-me recebendo o
valor mensal de... R$ 546,81.
Entrevista concedida por Denise Lobato Gentil ao
Jornal dos Economistas, publicada na edição de fevereiro de 2015, empenhada em
discutir a Previdência Social, nas modalidades pública e privada.
NÃO HÁ ROMBO NA PREVIDÊNCIA SOCIAL
“Se todos os trabalhadores lutassem por uma
previdência pública, eles seriam capazes de defender uma causa coletiva e de
ter uma aposentadoria com um valor adequado e digno.”
Denise Lobato Gentil*
P: Qual é a
sua avaliação do papel exercido pelos grandes fundos de pensão privados como
Petros e Previ? Esse modelo é positivo para a sociedade brasileira?
R: Tem duas avaliações sobre esse modelo e uma delas
não é correta, embora seja a mais popular de todas, que é a avaliação de que
esses fundos seriam importantes para o desenvolvimento do país, porque criariam
uma poupança necessária para o país ter investimentos. Os fundos de pensão
recolheriam uma parcela da renda dos trabalhadores e essas poupanças
financiariam o investimento privado, que é absolutamente fundamental para o
país crescer. Eu não compartilho dessa visão. Eu acho que os fundos de
investimento, e entre eles os fundos de pensão, têm outras alternativas de
investimento para essa poupança. Esses fundos encontram um mercado da dívida
pública com taxas de juros altas e baixíssimo risco. Não tem como uma ação
competir com um título público. Em países que adotam regime de metas de in
ação e praticam, por conta desse regime macroeconômico, taxas de juros
elevadíssimas, não tem como a poupança financiar o investimento.
P: E a
segunda avaliação?
R: O segundo raciocínio é que os fundos privados são
erguidos em cima do descrédito da previdência pública. Eles existem porque as
pessoas não confiam que receberão uma aposentadoria ou uma pensão digna no futuro.
As pessoas desconfiam, em primeiro lugar, da solvência do governo; em segundo
lugar, do valor desses benefícios no futuro. Foi construída uma desconfiança a
respeito da solvência do sistema previdenciário público, regido pelo INSS e
pelo Ministério da Previdência, que é altamente favorável ao sistema bancário
privado. Esses fundos existem dentro de bancos privados e são altamente
rentáveis para os bancos. Aquela ideia de você ter um espaço que ampara a
população simplesmente por você ser um cidadão cai em descrédito e a ideia que
ganha espaço é a de que só o mercado é capaz de salvar os que podem. Os que não
podem, paciência. Então quem é capaz, quem conseguiu um bom emprego e consegue
fazer uma poupança, esses conseguem poupar, aplicar num fundo, e esse fundo,
por sua vez, assegura as expectativas de futuro dessas pessoas. Essa é uma
ideia altamente perniciosa, a ideia de construir fundos privados, a previdência
não pública.
P: Você está
equiparando os fundos de empresas estatais com os fundos oferecidos pelos
bancos a todos...
R: Os fundos de uma empresa são fechados para os
funcionários e dependem da contribuição destes funcionários, que é baseada nos
salários que eles recebem. Então não são para todos os trabalhadores; são de
trabalhadores com salários mais elevados dessas empresas. Há uma desvalorização
de uma construção coletiva de proteção social. O estímulo à construção desses
fundos causa esse prejuízo. Porque se todos os trabalhadores lutassem por uma
previdência pública, todos seriam protegidos. Todos seriam capazes de defender
uma causa coletiva e de ter uma aposentadoria no futuro que tivesse um valor
adequado e digno. Mas você vê que essa ideologia é tão forte que as pessoas
dizem ‘ah, isso não existe’, e como não existe, caem para os fundos fechados.
Isso é altamente reacionário e ortodoxo, fugir das causas coletivas mais
sublimes à classe trabalhadora. Alguns trabalhadores não podem construir essa
poupança e, portanto, se não tiverem o apoio coletivo da classe a que
pertencem, vão estar desprotegidos no futuro. Ao mesmo tempo, esses que podem
pagar uma contribuição maior e poderiam defender benefícios futuros mais
elevados saem da luta, porque constroem uma alternativa de vida para eles, que
é individual ou no máximo de categoria. Então você reproduz no futuro a mesma
desigualdade salarial do presente. É como se você dissesse: na saúde nós temos
o SUS, que atende a todos. Mas aqueles que quiserem uma saúde melhor têm que
pagar planos de saúde privados. Se todos os trabalhadores pagarem planos
privados de saúde, o SUS vai degringolar, quem vai defender o SUS? Esse é o
ponto: a saúde pública existe para amparar todos os cidadãos, de qualquer
classe. A previdência não, ela depende de contribuições, a não ser a
previdência rural. Mas repare: se todos correm para a previdência privada ou de
categoria, a previdência pública vai naufragar. As pessoas acham que esses
fundos vão ampará-las no futuro e não vão defender uma causa coletiva de
proteção a todos. E o que é pior: isso é justificado em termos econômicos como
algo necessário para financiar o investimento. No caso do Brasil, não vai financiar
investimento coisa nenhuma, se você tem que disputar com uma taxa de juros
altíssima.
P: O que
você propõe na situação atual? É possível fazer uma transição para um sistema
de previdência pública que contemple todos os trabalhadores brasileiros?
R: Não é possível, porque o governo atual só
desvaloriza esses benefícios públicos. Agora em janeiro (2015), os
trabalhadores sofreram um baque com a maior dificuldade em acessar certos direitos. Mudou
o cálculo do seguro-desemprego e da pensão do sistema público. Mudaram também a
aposentadoria por invalidez, o auxílio-doença e a pensão por morte, que são
benefícios previdenciários, além do auxílio-reclusão. A previdência pública sofreu um baque de arrecadação porque o governo
desonerou a receita de muitos setores. (grifo nosso) Como a despesa só
tende a subir, pode ser que um dia tenhamos um déficit. Nunca houve déficit,
mas talvez um dia venha a ter, se o governo continuar com essa política de
estimular o investimento privado com a redução do custo do trabalho. Se a receita
cai e a despesa sobe, o que você vai receber no final?
P: Então não
há um rombo na Previdência Social hoje, como a grande imprensa divulga
amplamente?
R: Hoje não há
um rombo. Eu venho acompanhando isso há muito tempo. O rombo não existe nos
cálculos que eu faço. (grifo nosso) Em 2013 o resultado da seguridade
social, que é o guarda-chuva da proteção social brasileira, foi superavitário
em R$ 67,6 bilhões, pelos meus cálculos. Para a Anfip, que é a associação dos
fiscais da Receita Federal, o superávit em 2013 foi de R$ 76 bilhões.
P: Então
como se chega a esse suposto déficit tão propalado?
R: O governo, do lado das receitas, considera apenas
uma fonte de arrecadação da seguridade social: a arrecadação previdenciária,
que incide sobre a folha. Do lado da despesa, considera todas as despesas com
benefícios previdenciários, pensão, aposentadoria, todos os auxílios. Quando
você calcula o sistema urbano, ele é superavitário, e o sistema rural é deficitário.
E o superávit do sistema urbano não cobre o déficit do sistema rural. Só que
esse cálculo é tirado do bolso para mostrar que o sistema público, com eu falei
anteriormente, é um sistema de deficitário, que tende ao fracasso e ao
colapso. Mas a Constituição Federal, nos
artigos 194 e 195, estabelece que o sistema de proteção social é amparado por
um conjunto de receitas, e não por apenas uma fonte. Há arrecadações que
incidem sobre o lucro e o faturamento. O déficit é uma fábula. (grifo nosso)
P: Quais são
essas outras fontes?
R: A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, que
incide sobre o lucro, como o nome diz; a Cofins, que é a Contribuição do
Financiamento da Seguridade Social, que incide sobre o faturamento – hoje em
dia uma parte da Cofins incide até sobre o valor adicionado – ; o PIS/Pasep e outras contribuições como a
Contribuição sobre a Receita de Concursos de Prognósticos, que é a receita das
loterias. A Cofins tem uma arrecadação fantástica e ela vem para financiar a
seguridade social, que abrange toda a área de saúde do SUS e toda a área de
previdência de assistência social. Esse sistema foi criado assim. Mas as
pessoas querem olhar só a perna da previdência para delatar um déficit que não
existe, porque a previdência é financiada por outras fontes. Está na
Constituição Federal.
P: Como o
modelo de previdência brasileiro se compara ao de outros países?
R: Com essa crise o sistema europeu foi se
deteriorando também, e a gente perdeu muito chão mundialmente. Todas as
conquistas dos anos 50 e 60 foram sendo carcomidas pela crise de 2007. Mas o
sistema francês e o alemão ainda são muito bons. Eles têm uma cobertura que
envolve também os setores de educação, alimentação e habitação. O nosso sistema
envolve só previdência, saúde e assistência social. Ele é muito limitado, mas o
que temos ainda é melhor do que em qualquer outro país da América Latina. O SUS
é fantástico. Nós temos a previdência rural, que não exige carência de
contribuição para receber. Para o trabalhador rural ter direito ao benefício,
basta que ele expressamente prove que trabalhou por um determinado período. A
gente deve lutar para que essa previdência assegurada para a área rural também
seja assegurada para a área urbana. Grande parte da pobreza do país não está
mais na área rural, mas sim na área urbana. Seria preciso fortalecer o sistema
público, para que todos os trabalhadores fossem amparados na velhice, não
apenas aqueles que tiveram emprego formal e puderam contribuir. Isso é o ideal,
que nós pudéssemos nos juntar para que todos os brasileiros pudessem ter
aposentadorias no futuro, independentemente da contribuição. Bastaria provar
que você trabalhou. Se trabalhou, você contribuiu, porque indiretamente você
pagou vários outros impostos. Pode não ter pago a contribuição para a
previdência especificamente porque não era um trabalhador formal, mas ao
comprar um quilo de arroz você pagou ICMS, IPI. Você contribuiu para o Estado
brasileiro. Por que não teria direito a uma aposentadoria?
P: A
previdência pública tem um teto que é muito inferior ao que recebe parte dos
trabalhadores. É viável elevar esse teto?
R: Claro que é. A previdência tem um superávit. É
viável elevar esse teto para assegurar a defesa pelo trabalhador bem remunerado
do sistema público. Eu não digo que ele iria receber o que ganhava. Evidentemente,
ele teria que complementar isso com alguma poupança privada. Mas ele será
estimulado a lutar por esse sistema se grande parte da renda que ele irá
receber no futuro vier daí. Na previdência pública, você contribui hoje e o
valor da sua contribuição paga os aposentados de hoje. A aposentadoria ou
pensão que você receberá no futuro vai depender dos funcionários públicos
ativos na época em que você se aposentar. Há um cálculo para definir o valor do
benefício, mas não significa que quem está pagando isso é você. O regime é de
repartição, é solidário, em que os ativos contribuem para o benefício dos
inativos. Os saudáveis contribuem para aqueles que estão doentes ou
desempregados hoje. É um sistema de solidariedade. No sistema privado, você tem uma conta individual, na qual você
deposita. O banco vai aplicar, vai render juros e dividendos e no final isso é
submetido a um cálculo e essa renda é o que você vai receber. (grifo nosso)
Agora cuidado, porque no caminho o seu dinheiro está sujeito a tempestades e
trovoadas, porque muitos bancos enfrentam crises que fazem com que esse dinheiro muitas vezes desapareça e as
pessoas sejam submetidas a um retorno no final que é irrisório. (grifo
nosso) O risco das aplicações no sistema privado é altíssimo, e o que se paga
de taxa de administração desses fundos chega a ser 35% do valor aplicado, o que
não acontece no sistema público, onde você tem risco zero, porque o Estado
nunca falha. Eu nunca conheci um aposentado que dissesse que não recebeu a sua
aposentadoria naquele mês. O que a gente vê é o pessoal brigando para corrigir
o valor das aposentadorias.
P: Qual é a
política que você sugere para o Estado brasileiro em relação aos fundos
privados em operação?
R: Eu não daria a eles nenhum privilégio porque eles
não dão nenhum retorno à sociedade. O retorno é individual ou para as
categorias. Uma política que nos transformasse em uma sociedade de patamar
civilizatório mais elevado seria uma política que buscasse a proteção coletiva,
que só é conseguida com a contribuição solidária de todos os cidadãos. Aí você
teria uma queda de pobreza acentuada entre os trabalhadores e a ausência de
privilégios. Mas isso é uma sociedade do futuro, eu espero, onde os interesses
coletivos se sobrepõem aos interesses individuais. Não sei porque o governo
estimula tanto os fundos de pensão privados, quando é a aposentadoria pública
que garante uma vida digna para os brasileiros.
P: Como ficou
a aposentadoria dos servidores públicos federais?
R: Os bancos receberam um presente. A partir de agora,
o funcionário público vai receber o valor pago pelo INSS, o teto, e se quiser
receber mais vai ter que ir para um fundo de previdência, o FUNPRESP,
construído com recursos dos funcionários públicos, mas administrado de forma
privada, com as mesmas regras de todos os fundos. Funciona parte em sistema de
repartição e parte em sistema de capitalização. Houve uma resistência enorme à
criação desse fundo, e a contribuição para ele é facultativa. Eu quero ver
quantos funcionários vão optar por esse fundo. Os bancos conseguiram capturar
essa renda dos servidores públicos, que são estáveis, de alto patamar de renda.
Eles vão se apropriar desses recursos. Nunca vi uma reserva de mercado mais
maravilhosa do que essa. Os bancos estavam tentando isso há muito tempo, e nós
resistimos. E agora, no governo Dilma, isso passou. Um trabalhador comum a
qualquer momento pode ficar desempregado, e aí ele para de contribuir para o
fundo. Só contribui de novo quando voltar a ter uma renda. Mas os funcionários
públicos não, eles são estáveis, vão contribuir para sempre, e têm uma renda
altíssima. Vai ser uma quantidade de recursos enorme. É muito dinheiro que saiu
da previdência pública e foi para as mãos do setor privado.
* Professora do Instituto de Economia da UFRJ, tem
passagem pelo Ipea no período de 2008 a 2010 e experiência em órgãos de
planejamento e finanças municipais e estaduais. Ela realiza pesquisas na área
de Macroeconomia com concentração em Finanças Públicas. Doutorou-se em 2006
pelo IE-UFRJ com a tese A Política Fiscal e a falsa crise do sistema de
Seguridade Social no Brasil: Análise financeira do período recente.
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