R E S U M O
LEITE, Érico Lins. A Política
Brasileira de Comércio Exterior: a antiga e a nova ortodoxia - confronto
entre doutrinas e mecanismos de ação.
Rio de Janeiro: UFRJ/IE, 1998. Tese de Doutorado. xxxi, 611
p., 2 v.
O principal
objetivo desta Tese é demonstrar que o Brasil cometeu um grave erro ao adotar o
modelo liberal de comércio, no início dos anos 90, quando rompeu com uma longa
tradição regulatória e abdicou em favor do mercado à prerrogativa de promover
uma política de comércio exterior.
Até um passado
recente, o Estado brasileiro manteve fortes estruturas de formulação de
política e de administração do comércio exterior, o que lhe permitiu
desempenhar decisivo papel regulador para solução de diferentes crises
cambiais, desde aquela provocada pela Depressão Mundial dos anos 30 até as mais
recentes, nas décadas de 70 e 80.
De fato, a
política brasileira de comércio exterior nasce com a formidável crise
desencadeada pela Depressão de 30 e se desenvolve em razão de novos
acontecimentos internacionais que, a partir de então, envolvem o País. À medida
que nova crise se sucedia, eram instituídos mecanismos de defesa ou procedidos
a ajustes nos instrumentos anteriores, fazendo com que seguidamente fosse
aumentado o grau de regulação do Estado sobre a economia e, em especial, sobre
as contas externas, com o que foi sendo dado forma e desenvolvimento à política
comercial brasileira.
A esse longo e
vigoroso período de intervenção do Estado, que objetivava equilibrar as contas
externas e fomentar a produção nacional, através dos critérios de seletividade
nas importações e promoção das exportações, sucede-se, a partir de 1990, uma
nova ortodoxia, baseada no liberalismo comercial, que renega a política e todos
os instrumentos até então adotados.
A estratégia de
desenvolvimento fundamentada na proteção à indústria nacional e na substituição
de importações, adotada pelo Brasil ao longo de, no mínimo, cinqüenta anos,
acrescida da promoção às exportações, nas décadas de 60 a 80, é integralmente
abolida para dar passagem a outro modelo, sob o argumento de que a sua
continuidade impediria a retomada do desenvolvimento econômico e maior inserção
do País na economia mundial.
Considerando
que o atual modelo apresenta formas de atuação governamental e de regulação da
atividade econômica diametralmente opostas às adotadas no passado, que
possibilitaram ao País enfrentar diferentes crises de balanço de pagamentos, a
Tese questiona se a nova ortodoxia é suficientemente capaz de evitar ou
sequer contornar novas crises cambiais ou, o que seria pior, se eleva o grau de
exposição do País a repentinas mudanças na ordem econômica internacional.
O ponto
fundamental, portanto, é saber se a nova ortodoxia favorece ou, pelo
contrário, limita o desenvolvimento econômico brasileiro, tendo em vista que a
liberalização das importações (e, em decorrência, o déficit na balança
comercial) requer o contínuo ingresso de recursos financeiros internacionais
para o equilíbrio das contas externas.
Visando a
discutir a questão, foi confrontada a política de comércio exterior
aplicada pelo Brasil desde o início do século até o final dos anos 80, período
que denominamos de Antiga Ortodoxia, com a Nova Ortodoxia, que se inicia e se
desenvolve na atual década.
A memória de
oitenta anos de política comercial foi recuperada através do inventário e da
análise da legislação pertinente (leis, decretos-leis, medidas provisórias,
decretos, portarias, instruções, resoluções, circulares, comunicados e avisos),
além de se pautar em depoimentos de pessoas que atuaram na área, em diferentes
épocas, e na própria experiência do autor, como técnico da Carteira de Comércio
Exterior do Banco do Brasil, nos anos 70 e 80, da Secretaria de Comércio
Exterior, até o início de 1995, e como professor de economia internacional da
UFRJ, desde 1978.
Além disso, são
comparados os efeitos sobre o desenvolvimento da produção nacional na vigência
do antigo regime tributário das importações, em que prevaleciam tarifas
aduaneiras nominais elevadas, mas dada a existência de regimes especiais de
importação, as tarifas efetivas eram baixas, com o atual sistema, em que são
aplicadas alíquotas reduzidas, indistintamente, à toda a pauta. Também é
amplamente discutida a falta de preparo dos atuais órgãos governamentais no que
concerne à aplicação de medidas de defesa comercial, relativamente às práticas
desleais de comércio amplamente utilizadas por terceiros países, para promover
suas exportações.
A Tese estuda a
abertura do Brasil ao mercado internacional de capitais e mostra que, nos anos
90, em razão dos resultados comerciais, da maior ou menor sobrevalorização do
câmbio e da variação no nível das reservas internacionais do País, foram
procedidas a periódicas alterações nos instrumentos de captação recém-criados,
numa incrível sucessão de idas e vindas, ora incentivando, ora impondo limites à
captação, pelo País, de recursos no mercado financeiro internacional, palco,
nos últimos anos, de sucessivas e repentinas transformações.
A Tese também
examina atentamente os planos de estabilização econômica aplicados na economia
brasileira, nas décadas de 80 e 90, considerando estarem fortemente
relacionados ao câmbio e ao comércio exterior. Ademais, mostra que o País,
desde longa data, se utiliza largamente
da sobrevalorização do câmbio como instrumento de política antiinflacionária.
Finalmente, são
analisados os resultados pós-liberalização do comércio exterior e do movimento
de capitais.
A esse
respeito, releva observar que toda vez que o nível de atividade econômica se
expandiu, as importações dispararam e as exportações se entorpeceram, exceto
nos períodos em que as cotações internacionais de algumas commodities se
elevaram. Em conseqüência, os saldos comerciais declinaram de forma quase
ininterrupta desde 1990, até se tornarem negativos, a partir de 1995. Na conta
de serviços cresceram geometricamente os pagamentos de juros, relativos ao
antigo e, sobretudo, ao novo endividamento, além das remessas de lucros e
dividendos, em grande parte derivadas do avanço do programa de desestatização
de empresas e serviços públicos, assim como do aumento de aquisições de
empresas e bancos nacionais por grupos estrangeiros. Além disso, houve
desmesurado aumento das despesas com transportes e viagens internacionais.
Em decorrência,
ocorrem, na atual década, sucessivos déficits no balanço de pagamentos em conta
corrente, que alcançam, somente em 1997, o expressivo valor de US$ 33 bilhões,
equivalente a mais de 4% do Produto Interno Bruto brasileiro.
Desde que o
Brasil adotou o modelo liberal, deixando de praticar qualquer política
industrial e de comércio exterior, o equilíbrio das contas externas ficou na
inteira dependência da captação de recursos no mercado financeiro
internacional, fazendo-se necessário para dar sustentação ao modelo que também
fosse liberalizado o movimento internacional de capitais. À medida que os
saldos comerciais recuavam e, sobretudo, quando os déficits começaram a se
suceder, foram freneticamente criados e postos em prática um sem número de
mecanismos financeiros para atração de recursos externos visando o fechamento
do balanço de pagamentos. Enquanto isso, seguindo o receituário liberal, o País
se resignava em esperar que a produção nacional obtivesse, espontaneamente,
competitividade suficiente para incrementar as exportações e todos os agentes
econômicos diminuíssem a demanda por importações.
Ao longo da
década, acumulou-se substancial volume de reservas internacionais, visando a
prevenir eventuais interrupções no influxo de capitais e forma de evitar maior
sobrevalorização cambial que, paradoxalmente, tinha origem na própria entrada
maciça de recursos externos no País.
A ausência de
política de comércio exterior e a decorrente dependência ao mercado
internacional de capitais implicaram na necessidade de o País manter as taxas
de juros em patamares elevados. A política monetária, portanto, precisou ser
periodicamente ajustada, no mínimo, ao diferencial entre as taxas de juros
internas (descontada a variação cambial) e as taxas internacionais. O
endividamento interno público, além de se ter elevado em grande parte por conta
do aumento das reservas, passou a crescer continuamente, em função da
extraordinária realimentação provocada pelas altas taxas de juros.
A expansão da
atividade econômica foi contida e o nível de emprego reduziu-se em mais de 30%.
Relativamente à estabilização econômica, são
evidentes os resultados alcançados pelo País, a partir de 1994, com o Plano
Real. Com efeito, a liberdade para importar e a política cambial de
sobrevalorização da moeda nacional constituem as bases sobre as quais foi
construída e se mantém a atual política antiinflacionária. Oferta abundante a
preços baixos disciplinam e mesmo limitam os preços dos bens de produção
doméstica que estejam submetidos à concorrência internacional.
Nada obstante,
a estabilidade do nível geral de preços, como objetivo de curto e longo prazos
de política econômica, embora desejável e, até certo ponto, fundamental para o desenvolvimento econômico, não pode se transformar em um fim em si mesma.
Assim, os meios utilizados para alcançar e manter a estabilidade da renda
monetária devem ser objeto de rigorosa avaliação, pelas implicações negativas
que, a médio e longo prazos, podem acarretar sobre o desenvolvimento econômico.
Não se
desconhece que é tradicional, na ciência econômica, o conflito entre equilíbrio
interno e equilíbrio externo. Vale dizer, há indissociável choque entre
estabilidade das contas domésticas concomitante com a das contas externas. Na
maioria das vezes, quando é alcançado o primeiro equilíbrio, isto ocorre em
detrimento do segundo e vice-versa. Aceitável no curto prazo, mas perigoso no
longo prazo, justamente pelas suas conseqüências sobre o desenvolvimento
econômico.
Onde parecem
existir novidades no caso brasileiro atual, em relação ao tradicional conflito,
não é a submissão das contas externas do País à política antiinflacionária, mas
a insistência em praticar a liberdade comercial na expectativa que, em função
de ganhos de competitividade do produto nacional, venha ocorrer aumento
espontâneo das exportações, o que permitiria o equilíbrio das contas externas e
viabilizaria a continuidade dos resultados de controle da inflação.
Nessa linha de
raciocínio, os déficits comerciais sucessivamente contabilizados desde 1995
ganham dimensão superior. Não se tratam mais, como no passado, de déficits
conjunturais ou de déficits estruturais, decorrentes de choques externos de
oferta ou de uma ação programática de substituição de importações. Agora, os
déficits na balança têm origem na liberalização comercial, ou seja, no
próprio modelo adotado pelo País, visando a promover a reestruturação
produtiva e servir como instrumento para a estabilização da economia.
A Tese aponta
para o fato de que em presença de sucessivos déficits comerciais não é sequer
possível continuar mantendo o atual
programa de estabilização econômica, baseado na abertura comercial e na
sobrevalorização do câmbio, porque os déficits implicam no aumento da
dependência da captação de recursos externos para o equilíbrio do balanço de
pagamentos e a submissão da política monetária aos resultados externos, numa
conjuntura internacional em constante mutação.
A Tese
conclui que o Brasil cometeu um grave erro ao adotar o modelo liberal de
comércio, ao romper com a tradição regulatória e abdicar em favor do
mercado à prerrogativa de promover uma política de comércio exterior.
A atual
ortodoxia é incapaz de solucionar ou evitar a ocorrência de novas crises
cambiais. Pior, o novo modelo aumenta consideravelmente o grau de exposição do
Brasil a crises internacionais, porque o equilíbrio das contas externas e o
desenvolvimento econômico passaram a depender de forma contínua e crescente da
captação de recursos de curto prazo no mercado financeiro internacional.
Portanto, a
causa da crise cambial que aí está é o modelo seguido pelo País, a
ausência de política comercial, que subordina o equilíbrio das contas
externas brasileiras ao permanente ingresso de capitais estrangeiros, elevando
consideravelmente a exposição do País à ocorrência de crises econômicas
internacionais.
A rapidez com
que processou tanto a perda quanto a recuperação das reservas internacionais
brasileiras, nas crises do México, ao final de 1994, e do Sudeste Asiático, no
início de 1998, assim como o expressivo valor das reservas perdidas em curto
espaço de tempo, na atual crise cambial, iniciada com a débâcle russa,
além de evidenciarem a volatilidade dos fluxos de capitais e o risco de o País
continuar dependendo exclusivamente desses recursos para o equilíbrio das suas
contas externas, são argumentos que ajudam a demonstrar o grande equívoco
cometido pelo Brasil ao adotar a ortodoxia liberal de comércio.
A solução
reside na obtenção de uma balança comercial positiva. Todavia, em
presença de ampla liberdade comercial, que acarreta o contínuo crescimento das
importações, e na falta de uma política industrial consistente, que forneça
meios efetivos para o aumento da competitividade do produto nacional e
incremento das exportações, é impossível resolver o déficit comercial e, por
conseguinte, estancar o déficit em transações correntes.
A proposta
para a superação definitiva da atual crise cambial, evitar que outras se
desenvolvam, assim como para permitir que se possa praticar uma política
monetária independente, é que o Brasil estabeleça um projeto mínimo de
desenvolvimento e venha a formular uma Política de Comércio Exterior,
sendo necessário, ainda, criar um órgão coordenador de política e reestruturar
os atuais órgãos encarregados da administração do comércio exterior.
Érico Lins Leite
Rio de Janeiro, RJ
Setembro de 1998
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