terça-feira, 2 de maio de 2017

NÃO HÁ DÉFICIT NA PREVIDÊNCIA SOCIAL




Acredito que não haja déficit na Previdência Social. Além da reveladora entrevista da Professora Denise, abaixo reproduzida, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (ANFIP) divulgou, recentemente, estudo que também questiona a informação governamental de rombos na Previdência Social.

Ademais, parece-me, também, que estão nos empurrando, cada vez mais e em alta velocidade, Planos Privados de Previdência para complementação de aposentadoria.

A respeito, relato minha malfadada experiência. Ao leitor, cabe o julgamento.

Por volta de 1972, associei-me ao plano de previdência privada da CAPEMI (sistema de contribuição e aposentadoria definidas – sistema de capitalização: contribuição durante 25 anos e recebimento de pensão por 20 anos consecutivos, para uma renda mensal esperada de aposentadoria, ao cabo desse período, equivalente ao salário, à época, de um gerente de agência do Banco do Brasil). Periodicamente (anualmente, semestralmente ou mesmo mensalmente, de acordo com a velocidade do processo inflacionário), a contribuição era reajustada. Após 25 anos de contribuição, aposentei-me pela CAPEMI.

Em março do corrente ano de 2017, concluído o prazo de 20 anos de recebimento da “pensão” (aposentadoria), encontrava-me recebendo o valor mensal de... R$ 546,81.




Entrevista concedida por Denise Lobato Gentil ao Jornal dos Economistas, publicada na edição de fevereiro de 2015, empenhada em discutir a Previdência Social, nas modalidades pública e privada.



NÃO HÁ ROMBO NA PREVIDÊNCIA SOCIAL

“Se todos os trabalhadores lutassem por uma previdência pública, eles seriam capazes de defender uma causa coletiva e de ter uma aposentadoria com um valor adequado e digno.”
 Denise Lobato Gentil*

P: Qual é a sua avaliação do papel exercido pelos grandes fundos de pensão privados como Petros e Previ? Esse modelo é positivo para a sociedade brasileira?
R: Tem duas avaliações sobre esse modelo e uma delas não é correta, embora seja a mais popular de todas, que é a avaliação de que esses fundos seriam importantes para o desenvolvimento do país, porque criariam uma poupança necessária para o país ter investimentos. Os fundos de pensão recolheriam uma parcela da renda dos trabalhadores e essas poupanças ­ financiariam o investimento privado, que é absolutamente fundamental para o país crescer. Eu não compartilho dessa visão. Eu acho que os fundos de investimento, e entre eles os fundos de pensão, têm outras alternativas de investimento para essa poupança. Esses fundos encontram um mercado da dívida pública com taxas de juros altas e baixíssimo risco. Não tem como uma ação competir com um título público. Em países que adotam regime de metas de in­ ação e praticam, por conta desse regime macroeconômico, taxas de juros elevadíssimas, não tem como a poupança financiar o investimento.

P: E a segunda avaliação?
R: O segundo raciocínio é que os fundos privados são erguidos em cima do descrédito da previdência pública. Eles existem porque as pessoas não confiam que receberão uma aposentadoria ou uma pensão digna no futuro. As pessoas desconfiam, em primeiro lugar, da solvência do governo; em segundo lugar, do valor desses benefícios no futuro. Foi construída uma desconfiança a respeito da solvência do sistema previdenciário público, regido pelo INSS e pelo Ministério da Previdência, que é altamente favorável ao sistema bancário privado. Esses fundos existem dentro de bancos privados e são altamente rentáveis para os bancos. Aquela ideia de você ter um espaço que ampara a população simplesmente por você ser um cidadão cai em descrédito e a ideia que ganha espaço é a de que só o mercado é capaz de salvar os que podem. Os que não podem, paciência. Então quem é capaz, quem conseguiu um bom emprego e consegue fazer uma poupança, esses conseguem poupar, aplicar num fundo, e esse fundo, por sua vez, assegura as expectativas de futuro dessas pessoas. Essa é uma ideia altamente perniciosa, a ideia de construir fundos privados, a previdência não pública.

P: Você está equiparando os fundos de empresas estatais com os fundos oferecidos pelos bancos a todos...
R: Os fundos de uma empresa são fechados para os funcionários e dependem da contribuição destes funcionários, que é baseada nos salários que eles recebem. Então não são para todos os trabalhadores; são de trabalhadores com salários mais elevados dessas empresas. Há uma desvalorização de uma construção coletiva de proteção social. O estímulo à construção desses fundos causa esse prejuízo. Porque se todos os trabalhadores lutassem por uma previdência pública, todos seriam protegidos. Todos seriam capazes de defender uma causa coletiva e de ter uma aposentadoria no futuro que tivesse um valor adequado e digno. Mas você vê que essa ideologia é tão forte que as pessoas dizem ‘ah, isso não existe’, e como não existe, caem para os fundos fechados. Isso é altamente reacionário e ortodoxo, fugir das causas coletivas mais sublimes à classe trabalhadora. Alguns trabalhadores não podem construir essa poupança e, portanto, se não tiverem o apoio coletivo da classe a que pertencem, vão estar desprotegidos no futuro. Ao mesmo tempo, esses que podem pagar uma contribuição maior e poderiam defender benefícios futuros mais elevados saem da luta, porque constroem uma alternativa de vida para eles, que é individual ou no máximo de categoria. Então você reproduz no futuro a mesma desigualdade salarial do presente. É como se você dissesse: na saúde nós temos o SUS, que atende a todos. Mas aqueles que quiserem uma saúde melhor têm que pagar planos de saúde privados. Se todos os trabalhadores pagarem planos privados de saúde, o SUS vai degringolar, quem vai defender o SUS? Esse é o ponto: a saúde pública existe para amparar todos os cidadãos, de qualquer classe. A previdência não, ela depende de contribuições, a não ser a previdência rural. Mas repare: se todos correm para a previdência privada ou de categoria, a previdência pública vai naufragar. As pessoas acham que esses fundos vão ampará-las no futuro e não vão defender uma causa coletiva de proteção a todos. E o que é pior: isso é justificado em termos econômicos como algo necessário para ­ financiar o investimento. No caso do Brasil, não vai ­ financiar investimento coisa nenhuma, se você tem que disputar com uma taxa de juros altíssima.

P: O que você propõe na situação atual? É possível fazer uma transição para um sistema de previdência pública que contemple todos os trabalhadores brasileiros?
R: Não é possível, porque o governo atual só desvaloriza esses benefícios públicos. Agora em janeiro (2015), os trabalhadores sofreram um baque com a maior   dificuldade em acessar certos direitos. Mudou o cálculo do seguro-desemprego e da pensão do sistema público. Mudaram também a aposentadoria por invalidez, o auxílio-doença e a pensão por morte, que são benefícios previdenciários, além do auxílio-reclusão. A previdência pública sofreu um baque de arrecadação porque o governo desonerou a receita de muitos setores. (grifo nosso) Como a despesa só tende a subir, pode ser que um dia tenhamos um dé­ficit. Nunca houve déficit, mas talvez um dia venha a ter, se o governo continuar com essa política de estimular o investimento privado com a redução do custo do trabalho. Se a receita cai e a despesa sobe, o que você vai receber no ­ final?

P: Então não há um rombo na Previdência Social hoje, como a grande imprensa divulga amplamente?
R: Hoje não há um rombo. Eu venho acompanhando isso há muito tempo. O rombo não existe nos cálculos que eu faço. (grifo nosso) Em 2013 o resultado da seguridade social, que é o guarda-chuva da proteção social brasileira, foi superavitário em R$ 67,6 bilhões, pelos meus cálculos. Para a Anfip, que é a associação dos ­ fiscais da Receita Federal, o superávit em 2013 foi de R$ 76 bilhões.

P: Então como se chega a esse suposto déficit tão propalado?
R: O governo, do lado das receitas, considera apenas uma fonte de arrecadação da seguridade social: a arrecadação previdenciária, que incide sobre a folha. Do lado da despesa, considera todas as despesas com benefícios previdenciários, pensão, aposentadoria, todos os auxílios. Quando você calcula o sistema urbano, ele é superavitário, e o sistema rural é de­ficitário. E o superávit do sistema urbano não cobre o déficit do sistema rural. Só que esse cálculo é tirado do bolso para mostrar que o sistema público, com eu falei anteriormente, é um sistema de­ deficitário, que tende ao fracasso e ao colapso. Mas a Constituição Federal, nos artigos 194 e 195, estabelece que o sistema de proteção social é amparado por um conjunto de receitas, e não por apenas uma fonte. Há arrecadações que incidem sobre o lucro e o faturamento. O déficit é uma fábula. (grifo nosso)

P: Quais são essas outras fontes?
R: A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, que incide sobre o lucro, como o nome diz; a Cofins, que é a Contribuição do Financiamento da Seguridade Social, que incide sobre o faturamento – hoje em dia uma parte da Cofins incide até sobre o valor adicionado – ;  o PIS/Pasep e outras contribuições como a Contribuição sobre a Receita de Concursos de Prognósticos, que é a receita das loterias. A Cofins tem uma arrecadação fantástica e ela vem para ­ financiar a seguridade social, que abrange toda a área de saúde do SUS e toda a área de previdência de assistência social. Esse sistema foi criado assim. Mas as pessoas querem olhar só a perna da previdência para delatar um déficit que não existe, porque a previdência é financiada por outras fontes. Está na Constituição Federal.

P: Como o modelo de previdência brasileiro se compara ao de outros países?
R: Com essa crise o sistema europeu foi se deteriorando também, e a gente perdeu muito chão mundialmente. Todas as conquistas dos anos 50 e 60 foram sendo carcomidas pela crise de 2007. Mas o sistema francês e o alemão ainda são muito bons. Eles têm uma cobertura que envolve também os setores de educação, alimentação e habitação. O nosso sistema envolve só previdência, saúde e assistência social. Ele é muito limitado, mas o que temos ainda é melhor do que em qualquer outro país da América Latina. O SUS é fantástico. Nós temos a previdência rural, que não exige carência de contribuição para receber. Para o trabalhador rural ter direito ao benefício, basta que ele expressamente prove que trabalhou por um determinado período. A gente deve lutar para que essa previdência assegurada para a área rural também seja assegurada para a área urbana. Grande parte da pobreza do país não está mais na área rural, mas sim na área urbana. Seria preciso fortalecer o sistema público, para que todos os trabalhadores fossem amparados na velhice, não apenas aqueles que tiveram emprego formal e puderam contribuir. Isso é o ideal, que nós pudéssemos nos juntar para que todos os brasileiros pudessem ter aposentadorias no futuro, independentemente da contribuição. Bastaria provar que você trabalhou. Se trabalhou, você contribuiu, porque indiretamente você pagou vários outros impostos. Pode não ter pago a contribuição para a previdência especificamente porque não era um trabalhador formal, mas ao comprar um quilo de arroz você pagou ICMS, IPI. Você contribuiu para o Estado brasileiro. Por que não teria direito a uma aposentadoria?

P: A previdência pública tem um teto que é muito inferior ao que recebe parte dos trabalhadores. É viável elevar esse teto?
R: Claro que é. A previdência tem um superávit. É viável elevar esse teto para assegurar a defesa pelo trabalhador bem remunerado do sistema público. Eu não digo que ele iria receber o que ganhava. Evidentemente, ele teria que complementar isso com alguma poupança privada. Mas ele será estimulado a lutar por esse sistema se grande parte da renda que ele irá receber no futuro vier daí. Na previdência pública, você contribui hoje e o valor da sua contribuição paga os aposentados de hoje. A aposentadoria ou pensão que você receberá no futuro vai depender dos funcionários públicos ativos na época em que você se aposentar. Há um cálculo para definir o valor do benefício, mas não significa que quem está pagando isso é você. O regime é de repartição, é solidário, em que os ativos contribuem para o benefício dos inativos. Os saudáveis contribuem para aqueles que estão doentes ou desempregados hoje. É um sistema de solidariedade. No sistema privado, você tem uma conta individual, na qual você deposita. O banco vai aplicar, vai render juros e dividendos e no ­final isso é submetido a um cálculo e essa renda é o que você vai receber. (grifo nosso) Agora cuidado, porque no caminho o seu dinheiro está sujeito a tempestades e trovoadas, porque muitos bancos enfrentam crises que fazem com que esse dinheiro muitas vezes desapareça e as pessoas sejam submetidas a um retorno no final que é irrisório. (grifo nosso) O risco das aplicações no sistema privado é altíssimo, e o que se paga de taxa de administração desses fundos chega a ser 35% do valor aplicado, o que não acontece no sistema público, onde você tem risco zero, porque o Estado nunca falha. Eu nunca conheci um aposentado que dissesse que não recebeu a sua aposentadoria naquele mês. O que a gente vê é o pessoal brigando para corrigir o valor das aposentadorias.

P: Qual é a política que você sugere para o Estado brasileiro em relação aos fundos privados em operação?
R: Eu não daria a eles nenhum privilégio porque eles não dão nenhum retorno à sociedade. O retorno é individual ou para as categorias. Uma política que nos transformasse em uma sociedade de patamar civilizatório mais elevado seria uma política que buscasse a proteção coletiva, que só é conseguida com a contribuição solidária de todos os cidadãos. Aí você teria uma queda de pobreza acentuada entre os trabalhadores e a ausência de privilégios. Mas isso é uma sociedade do futuro, eu espero, onde os interesses coletivos se sobrepõem aos interesses individuais. Não sei porque o governo estimula tanto os fundos de pensão privados, quando é a aposentadoria pública que garante uma vida digna para os brasileiros.

P: Como ficou a aposentadoria dos servidores públicos federais?
R: Os bancos receberam um presente. A partir de agora, o funcionário público vai receber o valor pago pelo INSS, o teto, e se quiser receber mais vai ter que ir para um fundo de previdência, o FUNPRESP, construído com recursos dos funcionários públicos, mas administrado de forma privada, com as mesmas regras de todos os fundos. Funciona parte em sistema de repartição e parte em sistema de capitalização. Houve uma resistência enorme à criação desse fundo, e a contribuição para ele é facultativa. Eu quero ver quantos funcionários vão optar por esse fundo. Os bancos conseguiram capturar essa renda dos servidores públicos, que são estáveis, de alto patamar de renda. Eles vão se apropriar desses recursos. Nunca vi uma reserva de mercado mais maravilhosa do que essa. Os bancos estavam tentando isso há muito tempo, e nós resistimos. E agora, no governo Dilma, isso passou. Um trabalhador comum a qualquer momento pode ­ficar desempregado, e aí ele para de contribuir para o fundo. Só contribui de novo quando voltar a ter uma renda. Mas os funcionários públicos não, eles são estáveis, vão contribuir para sempre, e têm uma renda altíssima. Vai ser uma quantidade de recursos enorme. É muito dinheiro que saiu da previdência pública e foi para as mãos do setor privado.



* Professora do Instituto de Economia da UFRJ, tem passagem pelo Ipea no período de 2008 a 2010 e experiência em órgãos de planejamento e finanças municipais e estaduais. Ela realiza pesquisas na área de Macroeconomia com concentração em Finanças Públicas. Doutorou-se em 2006 pelo IE-UFRJ com a tese A Política Fiscal e a falsa crise do sistema de Seguridade Social no Brasil: Análise financeira do período recente.